10 January 2016


O ÚLTIMO INVERNO
 































I

Quando o corpo da terra é tocado
pelo derradeiro mês de inverno faz-se
um gélido sepulcro de almas.
Coração estagnado na umbrosa margem do rio,
a floresta cala-se, impenetrável de neblinas e mistérios.
Toca de feras, a noite, imensa, afunda-se
num abismo de medos e a árvore
estremece e sonha, intranquila,
a seiva gritando, cismática, nos trágicos ramos,
procurando em vão inexistentes clareiras.
Velha árvore solitária,
luzinha que vibra ainda no escuro profundo,
aguardas, esperançosa,
a suave aparição da aurora,
luminoso assombro que renova a alegria única do dia.
Mas o sol já não incendeia de fulgor dourado
o cume das colinas.
Pálido, fugidio, tenta, com esforço anémico,
arrancar milagrosa vida a putrefactos charcos.
O brilho dourado das estrelas desertou já e o
amarelo lunar é agora uma palidez que se esvai
sem glória pelas orlas do sonho.


II

O frio fustiga, impiedoso, as finas paredes do corpo,
a chuva não despega,
trespassa-te de humidade a alma
e é quando, pobre de ti,
mais sentes o inútil esplendor da solidão,
a sombra gelada do fim.
Sim, pobre de ti!
Nesta altura da vida somos todos dignos de pena.
Do corpo ou da alma, dignos de pena.
Uma pena sem gritos, de cruz às costas,
paciente, resignada, à espera da morte.
Já nem sonhar vale a pena porque o sonho,
antes maior que a vida,
é agora apenas o esconderijo da solidão.
Deus já não te vela. Dorme-te.
Tu és o seu sono!


III

Em tempos brilharam fulgurantes cidades de esperança,
lembras-te?
Havia uma manta universal capaz de aconchegar a
humanidade inteira, mas há ossos que continuam
a enregelar nas noites frias da hipocrisia e
lágrimas que rolam, sem rumo, pelos escombros da urgência.
Podia ter sido diferente, pensas!
Mas o mal está feito. O mal, esse delírio
que acompanha os homens desde a origem,
é sempre coisa irreversível, sem remédio.
Não, não és inocente.
Usaste a vida como se fora uma insignificância.
Uma vida construída à pressa,
tecida de frágeis fios de verdade.
De espanto em espanto, sempre à espera do
impossível milagre que transformasse o absurdo em deus,
as pedras em flores, o desespero em luz...
Agora é tarde
- É sempre tarde de mais, bem o sabes!
O clarão do verão é agora frágil pavio que leve brisa apaga.
A vida foi breve, a acção inútil,
a bondade uma ténue lamparina.
Ficaste a meio, hesitante, entre ser e fazer
tumulto de apetites minando o sentido preciso da lucidez.
Agora não te restam forças.
As raízes secam,
a alma entrou em estado de hibernação,
a memória é pântano e venceu


IV
A infinitude do mar é o bálsamo onde
procuras a inspirada voz que te justifique,
mas a praia, estendida para a solidão,
é ilha deserta para as palavras,
areal apenas reservado ao grito das aves
e ao mudo silêncio dos sobreviventes do sonho
e da catástrofe de ter nascido.
Nela nascem as tuas madrugadas,
passos lentos, inseguros, nostálgico silêncio,
de mão dada com os ecos da memória,
em revisitação alucinada das ondas.


V

Íntimo da dor, misturas ternura e saudade.
Mas a ternura é-te ainda mais sagrada porque
expressão do arrependimento.
Talvez na próxima primavera, dizes!
Mas a primavera não virá
O sol não aquecerá o sangue.
Do velho relógio na parede,
escorrem horas de espera inútil.
O nada vai erguendo laboriosamente
altares de silêncios.
Adormeces entre palavras que fogem,
entre coisas que minguam, se tornam cada dia
mais distantes e pequenas diante dos teus olhos,
cansados.
Acordas entre passos de sombras que avançam,
cercando de medo todo o espaço vital do teu mundo
O tempo vai aplanando o inevitável caminho do crepúsculo,
destino último para que fomos criados:
do túmulo quente do ventre materno,
ao berço frio da terra.


VI

Assombro na decadência,
enigma imenso e perfeito,
a morte permanece intacta no seu mistério,
aguardando.
E tu, pequeno nada resistindo ao infinito,
árvore deslumbrada pela promessa do eterno
encontras nela um consolo de aflito.
A esperança será flor, no outro lado do muro?
Crescerá um deus tranquilo no fim do sonho?
Será ele alegre cotovia, chilreando nos teus ramos?
Reunirás à volta de uma terna e enluarada fonte
os saudosos mortos que te chamam?
O céu não te responde e o poema é mudo,
um breve murmúrio a ouvidos surdos.
Não é lamento nem sequer inspiração,
porque aos poetas resta descriar.
Todo o bem, ou mal, da criação
já foi feito pelo criador!


VII

Último inverno.
É hora de interromper a corrida insana.
Não temes.
Melhor que morrer só não ter nascido.
Viverás agora a tua eternidade.
Talvez então comece aventura maior,
talvez finalmente o tempo da decifração.
Esqueces os dias que passaram.
Da longa travessia reténs a distante
lembrança de um jovem e sorridente vestido branco
e a memória ainda quente
de uma terna boca vermelha e húmida.
Contigo levarás apenas a visão libertadora
do alto voo das aves,
do lúcido silêncio da floresta
e da sábia imobilidade
das penedias.

texto: Pires da Costa, O Último Inverno


 



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